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A Natureza Penal da Lei de Improbidade Administrativa

A Natureza Penal da Lei de Improbidade Administrativa

Em 02 de junho de 1.992, regulamentando o § 4º, do art. 37 da Constituição Federal, foi promulgada a Lei Federal 8.249/92 – Lei de Improbidade Administrativa. 
Por  Marcio Guedes Berti

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1. Introdução

A Constituição Federal de 1.988 dispõe no § 4º, do art. 37, o seguinte:

“Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível”.

Em 02 de junho de 1.992, regulamentando o § 4º, do art. 37 da Constituição Federal, foi promulgada a Lei Federal 8.249/92 – Lei de Improbidade Administrativa. Referida lei teve como nascedouro o Projeto de Lei nº 1.446/91, encaminhado pelo Poder Executivo à Câmara dos Deputados, em 14 de agosto de 1.991.

Tratou-se de Projeto de Lei de iniciativa do Poder Executivo e, inicialmente, contava com apenas 13 (treze) artigos, prevendo pequenas alterações no combate à corrupção no poder público. Contudo, a tramitação do Projeto culminou com um número significativo de alterações, proposições e emendas, que acabaram culminando com o texto da Lei 8.249/92. Ao todo, foram 302 (trezentas e duas) emendas ao Projeto inicialmente encaminhado2. 

O objetivo do Projeto era, portanto, criar mecanismos de repressão que, para serem legítimos e constitucionais, dependiam de procedimento legal adequado (nos termos do § 4º, da CF), sem que, obviamente, fossem suprimidas as garantias constitucionais pertinentes, imanentes ao Estado Democrático de Direito. 

Referido Projeto de Lei tramitou no Congresso Nacional em momento turbulento vivido pela sociedade brasileira, dada a concomitância com o movimento social dos “caras-pintadas”3, que culminou com o impeachment do então Presidente da República, Sr. Fernando Afonso Collor de Mello.

A tramitação do Projeto de Lei 1.446/91, dada a importância da matéria e o número de emendas propostas (302), teve trâmite legislativo célere, pois do encaminhamento à Câmara dos Deputados pelo Poder Executivo e sua sanção pelo Presidente da República, passaram-se menos de 10 (dez) meses. 

Certamente a quadra histórica daquele momento contribuiu com a celeridade legislativa, pois tanto o nascimento do Projeto quanto a publicação da Lei 8.249/92 se deram em meio ao processo de impeachment do Presidente Fernando Collor, que veio a renunciar ao cargo em data de 29 de dezembro de 1.992. 

A mensagem do Projeto de Lei nº 1.446/91, elaborada pelo então Ministro da Justiça Jarbas Passarinho, mencionava que a futura Lei seria importante instrumento para o combate à corrupção, “uma das maiores mazelas que, infelizmente, ainda afligem o País” (BRASIL, 1991, p. 14.124). 

A Lei 8.429/92 veio, pois, regulamentar o art. 37 da Constituição, que dispõe sobre os princípios basilares que regem a administração pública, prevendo expressamente sanções para atos de improbidade administrativa. Referido texto de lei classifica, ainda, os atos ímprobos em três categorias, sendo eles o (i) enriquecimento ilícito; o (ii) prejuízo ao erário e a (iii) violação aos princípios da administração pública. 

Referida lei já ultrapassou a maioridade, e no ano em que ela completou 20 (vinte) anos, grandes vozes do direito enalteceram a importância de referido texto legislativo, bem como a relevância de sua vigência para a sociedade brasileira. 

Na véspera dos 20 (vinte) anos da Lei de Improbidade Administrativa (1º de junho de 2.012), o então Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Carlos Ayres Britto, avaliou a Lei 8.249/92 como “o mais denso e importante conteúdo do princípio da moralidade, do decoro e da lealdade”. Segundo o Ministro Ayres Britto, em seus vinte anos de vigência, a norma revolucionou a cultura brasileira, ao punir com severidade os desvios de conduta dos agentes públicos. Para ele, “a Lei de Improbidade Administrativa é revolucionária porque modifica para melhor a nossa cultura”. Afirmou ainda que Ayres Britto que, “com ela, estamos combatendo com muito mais eficácia os desvios de conduta e o enriquecimento ilícito às custas do Poder Público”4. 

Entretanto, a aplicação da Lei de Improbidade Administrativa ainda gera, na atualidade, discussões relevantes no que se refere a sua natureza, o que se  traduz no cerne deste artigo. 

2. Reflexões sobre a Lei de Improbidade Administrativa

2.1. Ação Civil Pública X Lei de Improbidade Administrativa

Passados mais de 20 (vinte) anos desde a publicação da Lei 8.429/92, ainda muito se discute sobre a sua natureza, se civil ou penal. Tanto assim, que às vésperas da comemoração aos 20 (vinte) anos da Lei de Improbidade (01º.06.2.012), o então Procurador Geral da República, Roberto Gurgel, proferiu palestra onde asseverou que: "ainda discute-se se a natureza da lei é penal ou civil, se os agentes políticos que estão sujeitos à lei dos Crimes de Responsabilidade também o estão à lei de improbidade administrativa, e, ainda, se estes mesmos agentes políticos, que gozam de foro por prerrogativa de função para as ações penais, podem ou não ser demandados em primeiro grau"5.

Não obstante se reconheça a importância de referida norma para a vida social e política do país, é relevante suscitar algumas reflexões sobre a Lei de Improbidade Administrativa, na medida em que, não raro, sua utilização vem acontecendo de forma temerária, excessivamente prejudicial aos seus destinatários. 

E já de início, é bom que se diga que quando a Lei de Improbidade Administrativa tipifica os atos de improbidade, o faz de forma vaga, genérica e aberta. A par disso, cabe ao intérprete, sobretudo ao Poder Judiciário, a tarefa de valorar o fato tido como ímprobo para enquadrá-lo em algumas das figuras típicas previstas na referida lei [arts. 9º, 10 e 11]. 

Essa tarefa nem sempre é fácil, contudo, é demasiadamente necessária, a fim de se evitar o ajuizamento temerário de uma Ação por Ato de Improbidade Administrativa, na medida em que as penas previstas no art. 12 da Lei 8.429/92 são bastante severas, a ponto de poderem ser consideradas as mais rigorosas em vigência no ordenamento jurídico. 

A par disso, ou seja, diante da gravidade das penas previstas no art. 12 da Lei de Improbidade Administrativa, é mister se estabelecer os princípios que norteiam o processo da Ação por Ato de Improbidade Administrativa. 

Registre-se que é comum a utilização da Ação Civil Pública para se processar alguém por ato de improbidade administrativa. No passado isso foi fruto de grande controvérsia doutrinária e jurisprudencial, na medida m que havia quem entendesse que não se poderia lançar mão da Lei da Ação Civil Pública [Lei 7.347/85] para se buscar a aplicação das sanções da Lei de Improbidade Administrativa [Lei 8.429/92]. Porém, atualmente, tal controvérsia foi sufragada pela jurisprudência e tem-se admitido a propositura daquilo que comumente se denomina de Ação Civil Pública por Ato de Improbidade Administrativa. Nesse sentido: 

PROCESUAL CIVL EADMINSTRATIVO. AÇÃO CIVL PÚBLICA. IMPROBIDADE ADMINSTRATIVA. ADEQUAÇÃO. RECURSO ESPECIAL PARCIALMENTE CONHECIDO E, NESA PARTE, DESPROVIDO.

      4. O entendimento majoritário da doutrina e da jurisprudência admite a adequação/compatibilidade do ajuizamento de ação civil pública (Lei 7.347/85)nas hipóteses de atos de improbidade administrativa previstos na Lei 8.429/2.

      5. Vem se firmando entendimento de que ação judicial cabível par apurar e punir os atos de improbidade tem a natureza de ação civil pública, sendo-lhe cabível, no que não contrariar disposições específicas da lei de improbidade, a Lei 7.347, de 24-7- 85. É sob essa forma que o Ministério Público tem proposto as ações de improbidade administrativa, com aceitação da jurisprudência (.). Essa conclusão encontra fundamento no artigo 129, inciso I, da Constituição Federal, que ampliou os objetivos da ação civil pública, em relação à redação original da Lei 7.347, que somente previa em caso de dano ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico. O dispositivo constitucional fala em ação civil pública para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos. Em consequência, o artigo 1º da Lei nº 7.347/85 foi acrescido por um inciso, para abranger as ações de responsabilidade por danos causados a qualquer outro interesse difuso ou coletivo. Aplicam-se, portanto, as normas da Lei nº 7.347/85, no que não “contrariem dispositivos expresso da lei de improbidade." (Maria Sylvia Zanela Di Petro, "Direto Administrativo, Ed. Atlas, 15ª ed., 203, pág.693).

      6. Precedentes do STJ. 

      7. Recurso especial parcialmente conhecido e, nesta parte, desprovido. 6

Mas há, ainda, vozes lúcidas que defendem a inaplicabilidade da Lei de Ação Civil Pública como instrumento para aplicação das sanções da Lei de Improbidade. Tanto que em outubro de 2.013, o Promotor de Justiça André Luís Alves de Melo publicou artigo na CONJUR7, sob a denominação: “Ação por improbidade não é ação civil pública”, argumentando que: 

“Ação por improbidade não é Ação Civil Pública (ACP), nem espécie desta, uma vez que a primeira é prevista na lei 8.429/92 (Lei de Improbidade Administrativa — LIA) e a segunda na lei 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública — LACP). Apesar de ser comum confundir uma com a outra, são ações distintas, inclusive não há em nenhuma das duas leis a previsão de aplicação subsidiária de uma em relação à outra, sendo este tema de relevante interesse, pois há vários reflexos processuais e à ampla defesa”.7

      Asseverou ainda que:

“A Lei de Improbidade tem objetivo principal de responsabilização (aplicação de sanção) e não de reparação do dano como é na Ação Civil Pública, logo a Lei de Improbidade não foca em direitos coletivos, difusos ou individuais homogêneos. A ação por improbidade tem como objetivo sanções como suspensão dos direitos políticos, aplicação de multas, impedimentos de contratar com ente público e outros bem diferentes da Ação Civil Pública”8.

Concordamos com o posicionamento segundo o qual é incabível Ação Civil Pública quando se pretende materializar as sanções previstas na Lei de Improbidade Administrativa, posto que a finalidade de cada ação é distinta. Na Ação Civil Pública (Lei n.° 7.347/85) a condenação é revertida para um fundo, gerido pelo Conselho Federal ou Estadual; já na Ação de Improbidade Administrativa, a condenação será revertida em favor da pessoa jurídica lesada. E mais: não há similitude entre essas ações no rito de tramitação. Sendo assim, quando ajuizada ação civil pública para aplicar as sanções da improbidade administrativa, o processo deveria ser extinto sem análise da matéria de fundo, por carência de ação.

Não é por outro motivo, aliás, que Hely Lopes Meirelles destaca que a denominação de Ação Civil Pública de Improbidade Administrativa, “é prática de pouca técnica jurídica, pois a ação de improbidade administrativa tem natureza, contornos e regramento próprios, não se confundindo com aqueles específicos das ações civis públicas em geral."9

2.2. Lei de Improbidade. Natureza Jurídica. Penal ou Civil?

Em que pese tratar-se de uma ação que tramita na esfera cível, parece razoável defender que os princípios que devem nortear o processo são os do processo penal e não os do processo civil, tendo vista que as sanções disciplinadas pelo art. 12 da Lei 8.249/92 possuem, sem dúvida alguma, natureza sancionatória penal. Explica-se: a LIA tem viés eminentemente sancionador/penalizador. Suas penas, não raro, são até mais severas do que aquelas previstas no Código Penal. Daí porque as regras que devem prevalecer no ambiente processual são as que balizam o processo penal e não o processo civil. 

Em sendo assim, é possível dizer que no campo da improbidade administrativa se aplicam os princípios da presunção da inocência;  da bagatela; da intervenção mínima [a fim de se evitar ações temerárias]; do direito ao silêncio; do princípio do nemu tenetur se detegere e, diria até que o depoimento pessoal da parte acusada de improbidade administrativa deveria ser  reservado para o final da instrução, tal como ocorre no processo penal, por tratar-se, sem dúvida, de ato processual de natureza híbrida, ou seja, serve tanto como meio de prova como de autodefesa, sendo que certo que o instituo da confissão  não se coaduna com o processo onde se imputa a prática de improbidade administrativa, posto que, repita-se, é inegável a natureza penal das sanções por ato de improbidade administrativa. 

      É discutível, inclusive, segundo nosso entendimento, a aplicação da pena de revelia no processo cível onde se imputa a prática de improbidade administrativa. A caracterização da improbidade administrativa, segundo lição de José Antônio Lisboa Neiva10, se dá: 

“por ação ou omissão dolosa do agente público, ou de quem de qualquer forma concorresse para a realização da conduta, com a nota imprescindível da deslealdade, desonestidade ou falta de caráter, que visse a acarretar enriquecimento ilícito, lesão ao patrimônio das pessoas jurídicas mencionadas no art. 1º da LIA, ou ainda, que violasse os princípios da Administração Pública, nos termos previstos nos artigos 9º, 10 e 11 da citada lei”.

A aplicação da Lei de Improbidade Administrativa, dada sua abstratividade, reclama cognição valorativa e subjetiva do intérprete, causando, destarte, altíssima insegurança jurídica, na medida em que os conceitos sobre o que é, ou não é, improbidade administrativa se altera de pessoa para pessoa [leia-se de Tribunal para Tribunal]. Tanto é lacunoso e vago o conceito de improbidade administrativa, que a própria lição doutrinária colacionada acima menciona que a improbidade também se caracteriza pela “falta de caráter”, que, no mundo jurídico, carece de precisa e objetiva definição.

Sinale-se que quando se defende que os princípios que devem reger o trâmite da Ação de Improbidade Administrativa são os do processo penal e não os do processo civil, tal se dá com a finalidade de proporcionar uma ampla proteção aos direitos e garantias individuais do acusado, na medida em que, na prática, o que se observa é que há uma flagrante mitigação de diversos direitos e garantias individuais sob o fundamento de que em se tratando de ato de improbidade administrativa, a presunção milita em favor da sociedade. Nada mais teratológico, posto que jamais se deve admitir flexibilização de direitos e garantias individuais, seja qual for o motivo, posto que esses direitos e garantias  também interessam à sociedade, eis que servem de contraponto ao poder estatal. 

Infelizmente, na prática, o que se denota é que aquele que é acusado de ímprobo possui em seu desfavor uma presunção de que realmente praticou o ato que lhe é imputado, a ponto de se observar, comumente, que há quase que uma inversão imediata, automática e indevida do ônus probatório. Explica-se: o acusado de praticar ato de improbidade administrativa é que tem o ônus de provar que não o cometeu, ou seja, transfere-se o ônus da prova do acusador para o acusado.

Não se olvide, portanto, que, em verdade, a ação de improbidade administrativa tem a natureza jurídica de uma ação penal, pois no seu bojo aplicam-se penas ao acusado subtraindo-lhe os atributos da cidadania e da vida honrada, ou seja, são-lhe aplicadas penas conceituadas como as mais graves do sistema jurídico em vigor. 

É de se ver, ainda, que a Lei de Improbidade Administrativa é composta por preceitos e sanções, sendo que os preceitos primários estão elencados nos arts. 9º, 10 e 11, e os secundários no art. 12. Infere-se, portanto, que a Lei de Improbidade Administrativa, em seu art. 12, impõe medidas coativas, sanções, tal qual o Direito Penal. Sim, posto que a sanção é a consequência do descumprimento do preceito.

Destaque-se que o simples fato da Lei de Improbidade Administrativa não prever medida sancionatória privativa de liberdade não retira a natureza penal de suas sanções, posto que há várias normas penais que são sancionadas por medidas outras que não implicam, necessariamente, em privação de liberdade.

As sanções do art. 12 da Lei de Improbidade Administrativa nada mais são do que penas aplicadas como consequência da violação aos preceitos primários dos arts. 9º, 10 e 11, onde se encontram tipificados os atos de improbidade administrativa. 

Bettiol11 conceitua pena como: “Conseqüência jurídica do crime, ou seja, a sanção prefixada pela violação de um preceito penal”. Heleno Cláudio Fragoso12, diz que a pena: “É a perda de bens jurídicos imposta pelo Órgão da justiça a quem comete crime. Trata-se da sanção característica do Direito Penal, em sua essência retributiva”.

Tais conceitos se aplicam perfeitamente aos casos das sanções previstas no art. 12 da Lei 8.249/92, verbis: 

Art. 12.  Independentemente das sanções penais, civis e administrativas previstas na legislação específica, está o responsável pelo ato de improbidade sujeito às seguintes cominações, que podem ser aplicadas isolada ou cumulativamente, de acordo com a gravidade do fato: 

I - na hipótese do art. 9°, perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio, ressarcimento integral do dano, quando houver, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos de oito a dez anos, pagamento de multa civil de até três vezes o valor do acréscimo patrimonial e proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de dez anos;  

II - na hipótese do art. 10, ressarcimento integral do dano, perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio, se concorrer esta circunstância, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos de cinco a oito anos, pagamento de multa civil de até duas vezes o valor do dano e proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de cinco anos; 

III - na hipótese do art. 11, ressarcimento integral do dano, se houver, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos de três a cinco anos, pagamento de multa civil de até cem vezes o valor da remuneração percebida pelo agente e proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de três anos. 

Parágrafo único. Na fixação das penas previstas nesta lei o juiz levará em conta a extensão do dano causado, assim como o proveito patrimonial obtido pelo agente.

Veja-se que a Lei de Improbidade Administrativa prevê severas sanções, a ponto de permitir a suspensão dos direitos políticos do acusado, ou seja, durante determinado período de tempo, a pessoa pode vir a ser apenada por uma sanção que lhe subtrai, ainda que temporariamente, o exercício da cidadania. Sim, pois na ordem jurídica pátria, a origem constitucional dos direitos políticos encontra assento no parágrafo único do art. 1º da Constituição Federal, que dispõe: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição". Este dispositivo encontra subsequente especificação nos artigos 14, 15 e 16 da Constituição (Título II, Dos Direitos e Garantias Fundamentais, Capítulo IV, Dos Direitos Políticos). Observe-se que os direitos e garantias individuais e o voto direto, secreto, universal e periódico constituem cláusulas pétreas da Constituição da República, não podendo ser objeto de emenda (art. 60, § 4°, II e IV). 

Como se nota, a Lei de Improbidade Administrativa tem o poder de subtrair do acusado de cometer ato ímprobo, a sua cidadania (do latim civitas, “cidade”), que em Direito significa nada mais nada menos do que a condição da pessoa natural de, como parte integrante de uma sociedade política organizada, membro de um Estado, participar da vida política deste Estado, possuindo, destarte, direito ao voto em eleições (direito de sufrágio), em plebiscitos e referendos e, também, o direito em ser votado (como candidato a cargo eletivo).

É certo que a Constituição Federal autoriza a perda dos direitos políticos em casos de improbidade administrativa (art. 15, V), contudo, em se tratando de severa punição, que, como já dito, retira o atributo de cidadania da pessoa, o processo que culmina com tão grave sanção deve ser regido por normas processuais que lhe garantam um amplo exercício do direito de defesa, tal como ocorre no processo penal. 

Não se pode cogitar o trâmite de uma Ação de Improbidade Administrativa em ambiente hostil, como o processo civil, onde os direitos e garantias fundamentais do cidadão possuem aplicabilidade mitigada. 

Por tais razões, é inegável que o acusado de improbidade administrativa pode (e deve) ter, militando a seu favor, o direito de presunção da inocência, bem como deve valer-se, em sua plenitude, de todos os recursos inerentes a sua defesa, tais como o direito ao silêncio (sem que isso seja interpretado como confissão13); o direito de não se autoincrimiar14; o direito de ser ouvido ao final da instrução15, cabendo ao Poder Judiciário, ainda, bem sopesar a acusação sobre a improbidade administrativa, a fim de avaliar se, deveras, a intervenção do Estado, naquele caso, é necessária, onde caberia aplicação, no campo da improbidade administrativa, dos princípios da insignificância (ou da bagatela) e da intervenção mínima (o Estado só deve se ocupar daquilo que é realmente relevante).

Ainda, cabe mencionar que no campo da improbidade administrativa é perfeitamente aplicável o princípio da presunção da inocência (ou da não culpabilidade), tal qual no processo penal, pois ninguém pode ser considerado ímprobo sem que haja sentença condenatória passada em julgado. Contudo, infelizmente, o que se observa na prática é que com o ajuizamento da Ação de Improbidade, o que se materializa é o princípio da presunção da inocência inverso, ou seja, há presunção da prática do ato (uma inversão quase que automática do ônus probatório), cabendo ao acusado, durante a instrução processual, provar que não cometeu o ato que lhe é imputado (como se esse ônus não pesasse sobre o acusador).

Diante de tais premissas, não se olvide que, em verdade, a ação de improbidade administrativa tem a natureza jurídica de uma ação penal, pois no seu bojo aplicam-se penas ao acusado, subtraindo-lhe os atributos da cidadania e da vida honrada, onde lhes são aplicadas penas (sanções) conceituadas como as mais graves do sistema jurídico em vigor. Portanto, o acusado de improbidade administrativa é posto "ad metallum" com a suspensão de direitos políticos e proibição de celebrar contratos com órgãos públicos, numa saudosa recordação das penas medievais do direito filipino. 

Frise-se, por ser demais relevante, que a circunstância de ser possível derivar da sentença proferida em Ação de Improbidade Administrativa preceito indenizatório, isso de maneira nenhuma descaracteriza sua natureza penal. Das sentenças penais, disciplinadas pelo Código de Processo Penal, também derivam preceitos condenatórios patrimoniais16.

Sinale-se que a ação civil é um direito-poder constitucional de provocar o Judiciário em busca da satisfação de um interesse ligado aos verbos "dar", "fazer" ou "não fazer". Já a ação penal é um direito-poder constitucional de provocar o Judiciário em busca do apenamento de um criminoso e, em sequência, do possível ressarcimento patrimonial. Indiscutível, portanto, a natureza penal da Ação de Improbidade Administrativa. 

Importantíssimo, assim, argumentar que a Lei de Improbidade Administrativa remete alguns de seus aspectos processuais, de forma subsidiária, ao Código de Processo Penal. Isto consta, inclusive, do § 12º, do artigo 17, da Lei de Improbidade Administrativa, que dispõe: “Aplica-se aos depoimentos ou inquirições realizadas nos processos regidos por esta Lei o disposto no art. 221, caput e § 1º, do Código de Processo Penal”.

Portanto, analisando-se a ratio legis da Improbidade Administrativa, sob este ângulo, é visto que sua natureza é penal, ou seja, é determinada pela aplicação das regras processuais penais, e não cíveis. 

Sendo assim, é inegável que a condenação por Improbidade Administrativa é penal, ainda quando proferida em sede de jurisdição civil. Ressalte-se que as normas penais são aquelas prescritivas de sanções, sejam estas de quaisquer espécies (privativas de liberdade, restritivas de direitos, prestações pecuniárias ou patrimoniais), ou seja, descrevem uma conduta, e a esta conduta determina a imposição de uma pena ao agente que a comete. 

Nesta esteira é brilhante o voto proferido pelo Ministro César Asfor Rocha, seguido pelos Ministros Barros Monteiro, Francisco Peçanha Martins, Vicente Leal, José Delgado, Fernando Gonçalves e Humberto Gomes de Barros, todos do Superior Tribunal de Justiça, em julgamento do HC 22432: 

A Lei nº 8.429/92 prescreve, no seu art. 12, um largo elenco de sanções de sumíssima gravidade, sendo de destacar a perda da função pública e suspensão dos direitos políticos por um lapso de 8 a 10 anos (art. 12, I); a primeira sanção (perda de função pública) é a mais exacerbada do Direito Administrativo Disciplinar e a outra (suspensão dos direitos políticos) é a mais rude exclusão da cidadania.  "A meu ver, a Lei nº 8.429/92 veicula inegáveis efeitos sancionatórios, alguns deles, como a perda da função pública e a suspensão dos direitos políticos, somente impingíveis por ato de jurisdição penal, o que faz legítima, ao que entendo, a aplicação da mesma lógica sistêmica que se usa nessa forma jurisdicional especializada (penal), onde não se duvida da plena fruição do foro especial por prerrogativa de função. "De menor relevo, ao que posso ver, que a Lei nº 8.429/92 denomine de civis as sanções de que cogita, pois a natureza das sanções consistentes na perda da função pública e na suspensãodos direitos políticos, por mais que se diga ao contrário, extrapolam abertamente os domínios do Direito Civil e se situam, também sem dúvida, nos domínios do Direito Penal (sancionatório) (grifou-se).          

Em semelhante posicionamento já se manifestaram os Ministros do Supremo Tribunal Federal Eros Grau, Ellen Gracie e Gilmar Ferreira Mendes, em seus respectivos votos, no julgamento da ADI – 2797. 

O Ministro Luiz Fux, atualmente membro do STF, quando ainda ocupante de cadeira no STJ, enquanto relator do REsp 721190/CE, destacou que:  "é uníssona a doutrina no sentido de que, quanto aos aspectos sancionatórios da lei de improbidade, impõe-se exegese idêntica a que se empreende com relação às figuras típicas penais."

      A própria Carta Suprema é expressa ao mencionar, no seu rol exemplificativo de direitos e garantias fundamentais, parte tocante ao direito penal, que: 

Art. 5º [...] XLVI – a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes: a) privação ou restrição da liberdade; b) perda de bens; c) multa; d) prestação social alternativa; e) suspensão ou interdição de direitos. (grifamos)

Forçoso concluir, pois, que as penas previstas para a improbidade administrativa, por restringirem direitos (poder-se- ia até cogitar do caráter penal da imposição de multa, pois há previsão neste sentido na seara penal) delineiam o contorno sancionatório-penal do sublime instituto da Improbidade Administrativa, donde decorre, por consequência lógica, aplicação dos princípios do processo penal na persecução processual por ato ímprobo.

A tese de que a Lei de Improbidade Administrativa possui natureza penal soa coerente. Veja-se, por exemplo, que no campo do processo civil, a parte quando intimada para prestar depoimento pessoal, deve comparecer e não pode se recusar a depor, sob pena de confissão ficta [CPC/15, art. 385, § 1º17], o que é um verdadeiro absurdo quando se trata de persecução processual na apuração de ato de improbidade administrativa. Diante disso, se considerada a natureza civil da LIA, indaga-se: caso o acusado de ímprobo, em seu depoimento pessoal, permaneça em silêncio, poderá sofrer a sanção processual de confissão ficta? Não parece razoável a defesa de tal tese, sendo mais plausível sustentar que o acusado de ato ímprobo tem o direito  e permanecer calado sem que isso seja interpretado em seu desfavor, pois o acusado não tem a obrigação legal de cooperar com o Estado em face ao princípio constitucional que veda a auto-incriminação [CF, art. 5º, inc. LXIII] e privilegia a resunção de inocência [CF, art. 5º, inc. LVIII].

O Código de Processo Penal, de forma absolutamente antagônica ao Código de Processo Civil, dispõe em seu art. 186 que: “depois de devidamente qualificado e cientificado do inteiro teor da cusação, o acusado será informado pelo juiz, antes de iniciar o interrogatório, do seu direito de permanecer calado e de não responder perguntas que lhe forem formuladas”. 

Sobre o direito ao silêncio, o Min. Celso de Mello, do STF, no  julgamento do HC 96.219, apontou que: “.... A recusa em responder ao interrogatório policial e/ou judicial e a falta de cooperação do indiciado ou do réu com as autoridades que o investigam ou que o processam traduzem comportamentos que são inteiramente legitimados pelo princípio constitucional que protege qualquer pessoa contra a auto-incriminação, especialmente aquela exposta a atos de persecução penal."

A jurisprudência já decidiu sobre assunto, esclarecendo que: "O Estado - que não tem o direito de tratar suspeitos, indiciados ou réus como se culpados fossem (RTJ 176/805-806) - também não pode constrangê-los a produzir provas contra si próprios (RTJ 141/512)."

Outro ponto que merece destaque refere-se à revelia. No campo do Processo Civil, prevê o artigo 344 que: “Se o réu não contestar a ação, será considerado revel e presumir-se- ão verdadeiras as alegações de fato formuladas pelo autor”. Já na esfera Processual Penal, o único efeito que a revelia produz é a desnecessidade de intimação do acusado acerca dos atos processuais, contudo, em hipótese alguma, há presunção de veracidade dos fatos alegados pela acusação. Dispõe o art. 367 do Código de Processo Penal que: “O processo seguirá sem a presença do acusado que, citado ou intimado pessoalmente para qualquer ato, deixar de comparecer sem motivo justificado, ou, no caso de mudança de residência, não comunicar o novo endereço ao juízo”.

A diferença em se atribuir caráter penal à LIA é gritante, como visto. Nesse desiderato, é possível defender, inclusive, que caso o acusado de ato ímprobo não compareça ao processo nem constitua defensor, deve o juiz nomear um Advogado Dativo para patrocinar sua defesa, e jamais aplicar os efeitos da revelia como previsto no Código de Processo Civil. 

Isso porque, na seara processual penal, nenhum acusado, ainda que ausente ou foragido, será julgado sem defensor [CPP, art. 261], sob pena de nulidade absoluta [CPP, art. 564, III, “c”]. 

Em resumo, pretende-se com o presente artigo defender que o acusado de improbidade administrativa tem o direito de: (i) permanecer em silêncio sem que isso ocasione sua confissão; (ii) de não produzir prova contra si próprio nem compelido a apresentar provas que possam comprometer sua defesa; (iii) de se recusar a participar, ativa ou passivamente, de procedimentos preparatórios como notícia de fato, inquérito civil, ou qualquer outro que possa repercutir negativamente em sua defesa processual (nemo tenetur se detegere); (iv) que a revelia não induza na presunção de veracidade dos fatos alegados pelo acusador de ato ímprobo; (v) que na ausência de apresentação de defesa no prazo legal, seja nomeado um defensor dativo para fazê-lo; (vi) que na instrução processual sejam aplicados os princípios da seara penal e processual penal, como o da (a) presunção da inocência, (b) da não auto-incriminação, (c) da intervenção mínima, (d) da bagatela, (e) da proibição da analogia “in malam partem”, (f) da irretroatividade da lei mais severa, (g) “ne bis in idem”, e (h) da humanidade da pena.

NOTAS 

2 http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=192235
3http://pt.wikipedia.org/wiki/Caras-pintadas#cite_note-www1.folha.uol.com.br-1 - Os “caras-pintadas” foi o nome pelo qual ficou conhecido o movimento estudantil brasileiro realizado no decorrer do ano de 1992 que teve, como objetivo principal, impeachment do presidente do Brasil na época, Fernando Collor de Melo. O movimento baseou-se nas denúncias de corrupção que pesaram contra o presidente e, ainda, em suas medidas econômicas impopulares, e contou com a adesão de milhares de jovens em todo o país. O nome "caras-pintadas" referiu-se à principal forma de expressão e símbolo do movimento: as cores verde e amarelo pintadas no rosto dos manifestantes.
4 http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=209014. Acessado em 22.08.2014.
5http://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI156904,91041lei+de+improbidade+administrativa+completa+20+anos. Acessado em 22.08.2014.
6 REsp 515554 / MA, Rel. Ministra Denise Arruda.
7http://www.conjur.com.br/2013-out-26/andre-luis-melo-acao-improbidade-nao-acao-civil-publica. Acessado dia 22.08.2014.
8 Ibidem.
9 MEIRELESS, Hely Lopes. Mandado de Segurança. São Paulo: Malheiros, 2005, 28ª edição, p. 211.
10 NEIVA, José Antonio Lisboa. Improbidade Administrativa. Niterói: Impetus, 2006, 2ª edição, p. 125.
11 Bettiol, in Kuehne, 2003, pag. 24.
12 Fragoso, in Kuehne, 2003, pag. 24.
13 Art. 385, § 1º, do CPC/15.
14 É abominável [e no nosso entendimento inconstitucional] a disposição do art. 10 da Lei 7.347/85, na medida em que obriga, em muitos casos, o acusado de improbidade em produzir prova contra si mesmo.
15 O depoimento pessoal do acusado de improbidade deve ser equiparado ao interrogatório do acusado no processo penal, tratando-se de meio de autodefesa, a ser realizado como último ato da instrução processual, nos termos do art. 400 do CPP.
16 O próprio Código Penal Brasileiro, em seu artigo 91 determina, dentre os efeitos da condenação, a certeza da obrigação de reparação do dano sofrido pela vítima. Assim, o caráter patrimonialista se faz presente por disposição legal quando das sentenças penais condenatórias.
17 Art. 385. Cabe á parte requerer o depoimento pessoal da outra parte, a fim de que esta seja interrogada na audiência de instrução e julgamento, sem prejuízo do poder do juiz ordená-lo de ofício. § 1º. Se aparte, pessoalmente intimada para prestar depoimento pessoal e advertida da pena de confesso, não comparecer ou, comparecendo, se recusar a depor, o juiz aplicar-lhe-á a pena.

 

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Marcio Guedes Berti

Marcio Guedes Berti

Mestrando em Filosofia pela Unioeste/Campo Toledo. Professor do Curso de Direito da Univel.

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